COTIDIANO

COTIDIANO
 
(SOBRE A RUA SÃO BENTO)

Filemon F. Martins 


Amanheci em estado de graça. O dia estava claro, maravilhoso e convidativo. Queria sair por aí pensando a esmo. Mas tinha que ir trabalhar. Saí num corre-corre, como, aliás, faço todos os dias. Antes de chegar à Repartição, precisava quitar uma prestação num magazine da cidade. Rua São Bento, Centro de São Paulo. Dez horas da manhã. O burburinho era enorme. Gente que vai, gente que vem. Rostos alegres, tristes e estranhos se confundiam na multidão. Ando apressado. No bolso, uma pequena carteira com alguns trocados e fichas de telefone. Mesmo com pressa, observo o semblante das pessoas que passam: alguns preocupados, carrancudos e outros, leves e descontraídos. 
Meus pés me levam à frente. Os camelôs tomam conta do calçadão da rua com suas quinquilharias. As lojas oferecem seus produtos. Vitrinas enfeitadas deslumbram os clientes. Passo pelo magazine e pago a prestação. Estou de volta. Agora rumo ao trabalho. De repente, por trás de mim, sinto um empurrão e alguém enfia a mão no meu bolso. Num relâmpago rasga a minha calça e leva meus trocados. Vi apenas que era um garoto. E o larápio rapidamente desapareceu na multidão. Alguns papéis se espalharam pelo chão. 
Recuperei-me do susto e recolhi minhas anotações. E prossegui pensando naquele garoto. Na vida miserável que leva ali na rua. E continuei pensando nele. E quantos, como ele, estão assim perdidos? Abandonados pelos descaminhos da vida. Pela família. Pela sociedade. Pelo desgoverno do próprio governo. Mas o trabalho me espera. Por que será assim? Deixo minhas reflexões para depois. Esqueço, por alguns instantes, meus pensamentos. E chego ao Tribunal. Para mais um dia de trabalho. Rua São Francisco, onde o Precatório me espera, diga-se, com muito trabalho. 



Obs.: O Tribunal Regional Federal tem outro endereço: Av. Paulista, 1842, e eu sou funcionário aposentado do TRF – 3ª REGIÃO.

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